terça-feira, 19 de julho de 2011

Artigo - Fonte:http://cinegnose.blogspot.com/2010/10/ciclismo-e-estado-alterado-de.html

Ciclismo e Estado Alterado de Consciência: Gnose no Esporte?

Qual a representação do imaginário da bicicleta na cultura pop? Para nossa surpresa encontramos uma conexão entre o estado de consciência que a bicicleta proporciona (pela seu singular design que funde homem e máquina) e o gnosticismo de Basilides: o estado mental de "suspensão" que permite silenciar o ruído da linguagem para que ouçamos o espírito que busca a Gnose.

Basilides, um dos primeiros professores gnósticos em Alexandria, Egito, no século II da Era Cristã, nutria uma radical desconfiança em relação à capacidade da linguagem apreender a realidade. Sua teoria pode ser resumida na ideia da Grande Negação: se a verdade sobre Deus está além do conhecimento humano, a negação do conhecimento e da linguagem é o sagrado caminho.

No seu escrito “Sete Sermões aos Mortos” Basilides afirma que diante da plenitude (Pleroma – a origem de onde tudo foi emanado) “pensamento e existência cessam porque o eterno é desprovido de qualidade”. O mundo criado (o cosmos físico), ao contrário, é regido pelo princípio de “diferenciação” onde aquilo que era uno é cindido em qualidades opostas. Através da linguagem e do conhecimento o homem torna-se obcecado em apreender as qualidades do devir nomeando-as através de conceitos e palavras uma realidade que é difusa, fluída, relativa. Se as qualidades do Pleroma são pares opostos que se anulam mutuamente (a união dinâmica dos opostos: plenitude/vazio, belo/feio, tempo/espaço, energia/matéria etc.), ao contrário, a linguagem humana as diferencia, discrimina, tonando-nos vítimas dos pares de opostos.

O resultado é o Mal: na busca do Belo, o homem produz o feio; na busca da paz acaba produzindo a guerra, na busca do eficaz por meio da tecnologia acaba produzindo a inutilidade, etc. Essa reversão irônica da linguagem (a não transitividade entre linguagem e realidade) acaba tornando o homem prisioneiro dos próprios conceitos e palavras, não conseguindo ouvir, dentro de si, a reminiscência do Uno, do Pleroma, da plenitude original que o uniria a Deus.
“O que não deveis esquecer jamais é que o Pleroma não tem qualidades. Somos nós que criamos essas qualidades através do intelecto. Quando lutamos pela diferenciação ou pela igualdade, ou por outras qualidades, lutamos por pensamentos que fluem para nós a partir do Pleroma, ou seja, pensamentos sobre as qualidades inexistentes do Pleroma. Enquanto perseguis essas idéias, vós vos precipitais novamente no Pleroma, chegando ao mesmo tempo à diferenciação e à igualdade. Não a vossa mente, mas o vosso ser constitui a diferenciação. Eis por que não deveríeis lutar pela diferenciação e pela discriminação como as conheceis, mas sim por VOSSO PRÓPRIO SER. Se de fato assim o fizéssemos, não teríeis necessidade de saber coisa alguma sobre o Pleroma e suas qualidades e, ainda assim, atingiríeis o vosso verdadeiro objetivo, devido à vossa natureza. No entanto, como o raciocínio aliena-vos de vossa real natureza, devo ensinar-vos o conhecimento para que possais manter vosso raciocínio sob controle.”(BASILIDES, “Sete Sermões aos Mortos” disponível em: http://www.gnosisonline.org/teologia-gnostica/sete-sermoes-aos-mortos/)

Por isso Basilides propõe um singular estado de consciência: o silêncio, o estado de “suspensão”, o esvaziamento da mente por meio da suspensão de toda atividade dos mecanismos de abstração da linguagem (diz-se que os discípulos de Basilides eram obrigados, como ritual de iniciação, a ficarem em silêncio por três anos...). Manter o “raciocínio sob controle”, lutar “contra a diferenciação”. Com esses termos Basilides refere-se a um estado de suspensão entre os pares opostos, o “tertium quid”, o terceiro elemento que solde as qualidades.


A Experiência da Bicicleta: estado de "suspensão"


E o que essa longa introdução tem a ver com ciclismo? Se fizermos um sobrevoo nas representações da cultura pop em relação à bicicleta e ciclismo, veremos que essa prática desportiva e meio de transporte ocupa uma posição especial, uma especial confluência entre especiais estados de consciência e esforço físico, corpo e mente.

Um primeiro exemplo é o Kraftwerk (grupo pop alemão considerado os padrinhos da música Techno e industrial), cujos membros são apaixonados pelo ciclismo e que, a partir do mecanismo, ergonomia e design da bicicleta, destilaram o “ethos” da sua proposta musical: a união entre Homem, Máquina e Natureza. Certa vez, um dos integrantes do grupo, Ralf Hütter, fez a seguinte afirmação após a elaboração do clássico single “Tour de France” de 1983: “a bicicleta é mais do que um mero instrumento de lazer, é algo mais próximo da declaração política. Não é para férias, É o homem-máquina. Sou eu, o homem-máquina na bicicleta. Velocidade, equilíbrio, uma certa liberdade de espírito, manter a forma, técnica e perfeição tecnológica, na aerodinâmica”.

Para ele, a bicicleta é em si um instrumento musical: o som ritmado da corrente, engrenagens, a respiração e batimento cardíaco, tendo como fundo o som contínuo “shhhhhh” do contado do pneu no asfalto. Tal como um mantra, confere uma “liberdade ao espírito” ao esvaziar a mente, seja pela repetição de sons e movimento, seja pelo esgotamento físico.

Aqui podemos fazer uma surpreendente conexão entre Basilides e a bicicleta: o estado de consciência de suspensão na bicicleta é, ao mesmo tempo, simbólico e literal. Montar na bicicleta e se deslocar velozmente como se estivesse suspenso e, ao mesmo tempo, o som ritmado do corpo e do mecanismo anulando o trabalho mental.

Por experiência própria, é surpreendente os “insights” ou ideias que, paradoxalmente, advém desse vazio mental. A união dos opostos. Assim como na criação por brainstorming onde um estado caótico de ideias desconexas produz, ao longo do tempo, uma massa crítica que, de repente, produz um salto qualitativo: do nada, do caos, surge repentinamente a ordem, uma ideia.

É como se o barulho da atividade mental racional e cotidiana não nos deixasse ouvir as camadas mais profundas do nosso interior. É necessário silenciar a mente, nem que seja por meios violentos como no filme “O Clube da Luta”: a luta tem um aspecto de disciplina, ascese, tal qual um mantra onde os pensamentos e a racionalidade são subjugados à disciplina da repetição até que se convertam no oposto: o estado de suspensão de sentido para a libertação da consciência.

Músicas como “Bicycle Race” do Queen apontam para esse silêncio da racionalidade.
Você diz preto eu digo branco
Você diz barca eu digo picada
Você diz tubarão eu digo ei, cara
Tubarão nunca foi minha cena
E não gosto de “Guerra nas Estrelas”
Você diz Deus dê-me uma escolha
Você diz Deus eu digo Cristo
Eu não acredito em Peter Pan, Frankenstein ou Super Homem
Tudo o que quero fazer é
Bicicleta, Bicicleta, Bicicleta
Eu quero montar na minha bicicleta
Conceitos, escolhas, palavras são como ruídos que impedem a liberdade do espírito ouvir a si mesmo, suas reminiscências que o faça se conectar de volta à plenitude.

Esvaziamento da mente e liberdade de espírito alcança o estado alterado de consciência que chega à catarse e transcendência que altera a maneira como enxergamos a relidade, como na música “Bicycle, Bicycle, You are my Bicycle” da banda "Be Your Own Pet":
Vamos mudar a cor dos olhos
De cada senhora
Somos rápidos, nós somos rápidos
Somos rápidos, estamos explodindo
Tudo porque

Estamos sobre duas rodas, garota
Estamos sobre duas rodas, garota

Mude as cores da sua maquiagem
Todos os dorminhocos vão acordar
Tudo porque todos, porque todos, porque
Porque, porque ...

Sem engrenagens, sem freios
Nada real, nem falso

Transcender ao ponto das engrenagens e freios da bicicleta desaparecerem. Tal liberdade conduz à suspensão: nada real e nem falso, a busca de uma experiência que supere o dilema dos pares opostos, da armadilha que a linguagem e o conhecimento não conseguem se libertar. Ir além das engrenagens e freios (razão e linguagem).

A arquetípica figura em contra-luz de um ser extraterrestre montado em uma bike BMX no pôster do filme ET de Spielberg é uma síntese das representações pop em torno do imaginário da bicicleta: suspenso no ar tendo a Lua como fundo. A representação icônica de todo um imaginário gnóstico que envolve a bicicleta: suspensão como um estado alterado de consciência que possibilite o silêncio que nos faça ouvir a voz íntima da gnose.

Artigo - fonte: http://cinegnose.blogspot.com/2011/03/os-ciclistas-atropelados-de-porto.html

Precisamos encarar o atropelamento dos ciclistas do grupo Massa Crítica em Porto Alegre como um sintoma dessa verdadeira bomba tecnológica que, ao criar uma relação inorgânica e virtual com o espaço, o ambiente e o Outro, propicia a indiferença, amoralidade e violência.


Indignação é a mínima reação civilizada que podemos ter diante das imagens do atropelamento proposital de 20 ciclistas durante a passeata do grupo Massa Crítica na noite da última sexta em Porto Alegre. Para pessoas como eu que utilizam diariamente a bicicleta como meio de transporte, a notícia da prisão do responsável (que, segundo consta, detém uma ficha de antecedentes de violência e contravenções no trânsito) não é motivo de alívio ou de sensação de justiça feita.

As imagens bizarras de ciclistas sendo jogados para o alto com suas bicicletas retorcidas contém algo de incômodo que não está apenas no conteúdo das imagens, mas no fato delas se constituírem em sinais de uma espécie de sismógrafo do movimento mais profundo, de uma história subterrânea que vai além da eficácia de leis, regras éticas ou legislações de trânsito que protejam ciclistas no caos motorizado.

Este episódio captado em imagens que repercutiram na mídia internacional é um desses sintomas mais visíveis da armação de uma verdadeira bomba tecnológica: a lenta constituição de um novo paradigma que rege as relações do homem com a tecnologia (tecnologias “tecnognósticas”) que virtualiza as relações com as ferramentas e cria uma relação inorgânica com o meio ambiente.

O pesquisador português Hermínio Martins (MARTINS, Hermínio. Hegel, Texas e Outros Ensaios de Teoria Social. Lisboa: Edições Século XXI, 1996) acredita que o século XX foi um ponto de viragem na história da tecnologia. Até então, tínhamos uma visão antropocêntrica da tecnologia, isto é, como um conjunto de instrumentos que seriam projeções das funções internas do corpo. Instrumentos que seriam verdadeiras extensões que aprimoravam potencialidades do corpo humano (telescópio para os olhos, o automóvel para as pernas etc.). Tal visão é solapada pela tecnociência que vê não mais os instrumentos como extensões, mas, agora, próteses que superam o orgânico (biotecnologia, clonagem, nanotecnologia, realidade virtual ou a própria tecnologia computacional).

A essa extrapolação dos limites do orgânico Victor Ferkiss (FERKISS, Victor. Technology and Culture: gnosticism, naturalism and incarnational integration, Cross-currents, 1980) vai caracterizar como “gnosticismo tecnológico”.

Como objeto símbolo do século XX, o automóvel é certamente o produto tecnológico onde mais explicitamente podemos localizar essa transformação de paradigma. Nas suas origens românticas o automóvel guardava ainda uma relação orgânica com a geografia, com o percurso. A velocidade menor e as amplas janelas em torno do motorista criavam uma relação mais orgânica com o em torno e a paisagem. Esse imaginário retro em torno do automóvel foi imortalizado pelo grupo alemão de música eletrônica Kraftwerk na composição “Autobahn” (1974):
"Estamos dirigindo na auto-estrada
Em nossa frente há um amplo vale
O sol está brilhando com raios reluzentes
A pista é uma trilha cinza
Faixas brancas, lateral verde
Ligamos o rádio
Do alto-falante soa:
Estamos dirigindo na auto-estrada"
Nas suas origens românticas o automóvel
ainda guardava uma relação orgânica com a
geografia e o percurso
Tudo isso vai mudar, paradoxalmente, no momento em que o carro se torna o símbolo da liberdade e contestação jovens. Em filmes como “Juventude Transviada” (Rebel Without a Cause, 1955) o dirigir velozmente em perigosos “rachas” é a expressão de uma liberdade que, no íntimo, guarda a ansiedade Pós-Guerra: “não quero ficar onde estou nem ir para parte alguma. Quero ficar em suspensão!” A relação do automóvel com o meio ambiente (geografia, percurso, paisagem) desaparece em um estado de suprema ansiedade na cultura da velocidade. O ator James Dean é o herói e mártir dessa geração (morre num acidente automobilístico). É a preparação de terreno para os dias atuais: o carro como uma cápsula de sobrevivência, onde o motorista se isola do em torno para viver num estado de suspensão, cercado de gadgets tecnológicos (aparelhos de som, DVD, GPS etc.).

Dessa maneira, o simbolismo do carro como liberdade na era da juventude transviada já trazia dentro de si a ansiedade daquele que não vê mais o automóvel como meio de transporte, mas como um fim em si mesmo: ficar dentro dele como um estado de suspensão, desconectado e sem relação orgânica com o espaço e a geografia.

Automóvel: cápsulas de sobrevivência

Da simbologia da liberdade, hoje os automóveis transformam-se em verdadeiras cápsulas de sobrevivência. Isolados dentro dos veículos, veem o mundo ao seu redor se virtualizar em dados e informações: a navegação em GPS (dando ilusão de racionalidade no caos motorizado), os serviços de trânsito das rádios, ar condicionado criando um ambiente artificial e, por último, o insulfilm que reforça a sensação de isolamento e falsa sensação de segurança.

Essa virtualização ou a relação inorgânica com o ambiente por meio da mediação do carro é um sintoma de um paradigma tecnológico mais amplo. Por exemplo, prédios corporativos que se tornam verdadeiros bunkers, arquitetonicamente sem nenhuma interação com o ambiente urbano ao redor. Dentro deles, pessoas em ambientes artificialmente climatizados, sem ventilação ou iluminação naturais (as janelas perecem vidros de aquários) como se estivessem no interior de uma bolha através do qual observam o mundo transformado em informações abstratas.

A virtualização das relações humanas por meio das redes é um sinalizador desse movimento: relações face-a-face substituídas por interfaces da tela. Embora fisicamente isolados no ambiente fechado de suas casas ou escritórios, cria-se um virtual sensação de participação comunitária. Enquanto o corpo reside inerte e contido num espaço fechado, a mente viaja pelo ciberespaço numa aparente sensação de liberdade.

O carro, os prédios corporativos e relações humanas por meio de interfaces são sismógrafos de um mesmo paradigma que vai trazer profundas consequências ética.

Michael Heim em seu “The Metaphisics of Virtual Reality” (Oxford University Press, 1993) levanta uma brilhante consideração a respeito de conseqüências éticas dos “gnóstico-platônicos computadores de comunicação”. O corpo e as relações face-a-face desaparecem nos processos de comunicação on line. Ao mesmo tempo, essa virtualidade comunicativa turva as âncoras com o mundo real (finitude, temporalidade e senso de fragilidade corporal). Para ela, essas âncoras representam uma autêntica base cinestésica de toda ética ou moral. Sem elas, o que temos é o crescimento da amoralidade, a partir do momento que nesta interface tecnológicas os limites entre o Eu e o Outro se esfumam para produzir, em seu lugar, indiferença.

Pragmatismo e Sedução por Gadgets Tecnológicos

Pragmatismo e sedução pelos gadgets
tecnológicos: os dois pressupostos da bomba
chamada "progresso"
Essas observações de Heim em relação ao ciberespaço podem ser extrapoladas para toda relação do homem com os instrumentos tecnológicos atuais. Essa natureza virtual das tecnociências contemporâneas diluem as relações do corpo e do Eu com o espaço, com o Outro e o meio ambiente. Meios de transportes, arquiteturas e redes computacionais inorgânicas produzem duas consequências diretas: o pragmatismo tecnológico e a sedução por gadgets tecnológicos.

O que é útil e conveniente (lei do menor esforço) é moralmente bom. Essa é a essência do pragmatismo tecnológico que produz a ideologia da inevitabilidade do progresso (ruas abarrotadas de carros, formas de relacionamento sem os usuários deixarem o isolamento de seus corpos, prédios/shoppings/bunkers blindados e climatizados etc.). Por exemplo, o carro seria moralmente bom porque é útil e poupa esforços. Torna-se natural a sua multiplicação e a irracionalidade do caos motorizado.

Ao mesmo tempo os gadgets tecnológicos seduzem por dar às pessoas a sensação de transcendência e poder sobre o orgânico e o físico: carros “inteligentes” e prédios “inteligentes” dão a sensação de poder e controle sobre um pequeno espaço privado, enquanto a esfera pública fica em ruínas, escombros, enchentes e congestionamentos. Essa sensação de poder e transcendência tem uma elação direta com a indiferença, frieza e agressividade em relação ao Outro.

Software de navegação por GPS para motoristas presos em congestionamentos e enchentes, DVDs em autos para fazerem os motoristas esquecerem o tempo perdido e até carros que fazem balizas automaticamente dão essa sensação de poder inorgânica, criando um indivíduo que não interage mais com a paisagem, com o espaço e com as pessoas ao redor.

Portanto, precisamos encarar o atropelamento dos ciclistas em Porto Alegre como um sintoma dessa verdadeira bomba tecnológica que, ao criar uma relação inorgânica e virtual com o espaço, o ambiente e o Outro, propicia a indiferença, amoralidade e violência.

Diante desse paradigma tecnocientífico generalizado o que fazer? Leis, ciclovias, campanhas de conscientização e busca por formas de convivência pacífica entre ciclistas e motoristas são boas por um curto período de tempo.

O que incomoda na imagem dos atropelamentos dos ciclistas do grupo Massa Crítica em Porto Alegre é que, se o episódio for o sintoma de uma tendência cada vez mais radical impulsionada pelo pragmatismo da técnica e pela sedução por gadgets tecnológicos, significa que temos um problema muito maior do que um motorista tresloucado com histórico de violência no trânsito. Temos que combater esses dois pressupostos que impulsionam as tecnociências. Enquanto eles não forem desmontados a bomba do chamado "progresso" seguirá em contagem regressiva.